Demétrio, o Cínico

Demétrio, que, como já acenamos, é o primeiro nome de cínico da era imperial de que temos notícia, foi contemporâneo de Sêneca,1 muito admirado e apreciado por ele. Eis algumas eloquentes passagens, extraídas do De Beneficiis, das Cartas e do De Providentia.

"Demétrio, o cínico, [é] filósofo de grande importância, a meu ver, mesmo comparado aos grandes."2

"Há pouco citei Demétrio [...] homem de sabedoria completa (ainda que ele seja o primeiro a negá-lo) e de inabalável constância nos seus propósitos, de uma eloquencia como a que se atribui aos melhores tempos, isto é, não preocupada com a busca dos argumentos e com a excelência da linguagem, mas toda tendida à exposição dos conceitos com vigorosa paixão, segundo a inspiração. Estou certo de que a este homem a Providência deu tal vida e tal faculdade de eloquência para que não nos faltasse um único exemplo, uma só reprovação."3



"Trago sempre comigo Demétrio, o melhor dos homens, deixo de lado os grandes purpurados e converso com ele seminu e o admiro. E como não admirá-lo? Constatei que nada lhe falta. Alguém pode desprezar tudo, mas não há ninguém que possa ter tudo. A via mais curta para alcançar a riqueza é desprezá-la. Quanto ao nosso Demétrio, ele vive ão como quem despreza todas as coisas, mas como quem deixou aos outros a posse delas."4

Demétrio sustentava a necessidade de reduzir a filosofia ao conhecimento de poucos preceitos e à sua rigorosa aplicação. Existem, dizia ele, muitos conhecimentos interessantes e cuja aquisição traz alegria, mas apenas poucos são os essenciais e esses poucos são de fácil apreensão, já que a natureza os pôs ao alcance de todos. Eis esses preceitos essenciais:

"Se o nosso ânimo aprendeu a desprezar tudo o que é devido ao acaso, se soube dominar o temor, se não aspira com ávida esperança a coisas impossíveis, mas aprendeu a pedir a si mesmo toda riqueza, se libertou-se do temor dos deuses e dos homens e sabe que dos homens não há muito a temer, dos deuses, nada; se os homens, desprezando tudo o que adorna, mas ao mesmo tempo atormenta a nossa vida, chegou a compreender claramente que a morte não traz nenhum mal, mas elimina todos eles; se dedicou-se inteiramente à virtude e acha fácil qualquer via que ela indica; se, criatura destinada à vida associada e gerada pela coletividade, considera o mundo como a casa comum de todos e abriu a sua consciência aos deuses e em todas as circusntâncias se comporta como se estivesse exposto ao controle de todos - temendo mais o seu próprio juízo que o dos outros - então este, subtraindo-se às tempestades, estabeleceu-se solidamente sobre a terra firme, sob um céu seguro e chegou ao perfeito conhecimento do que é útil e necessário. Todas as outras coisas servem para alegrar o nosso tempo livre: pode também recorrer a elas quando o ânimo já está ao seguro, mas elas apenas o afinam, não o temperam."5

Nesse contexto readquire todo o seu antigo significado o ponos, ou seja, a fadiga, e o exercício que tempera o ânimo e o torna capaz de afrontar todas as adversidades da vida. Uma existência que nunca sofreu os abalos da sorte e nunca se defrontou com as adversidades, para Demétrio, é "um mar morto"6, para quem, consequentemente, o homem que nunca foi golpeado pela adversidade, longe de ser feliz, como crê a maioria, na realidade é infeliz. Sêneca refere, de fato, este seu mote:

"Ninguém me parece mais infeliz do que um homem a quem nunca aconteceu nenhuma adversidade."7

Enfim, deve-se observar que o cinismo de Demétrio colore-se de um considerável sentimento religioso, muito próximo ao que já tinha inspirado ao estóico Cleantes. É ainda Sêneca quem nos reporta o testemunho mais significativo a respeito:

"Recordo-me de ter ouvido também esse discurso animoso de Demétrio, homem de fortíssimo coração: 'Ó imortais, de uma só coisa posso lamentar-me de vós: por que não me fizestes conhecida antecipadamente a vossa vontade. De fato, teria chegado antes a sustentar aquelas provas que agora sustento por chamado vosso. Quereis tomar os meus filhos? Para vós é que os trouxe ao mundo. Quereis alguma parte do corpo? Tomai-a. Não vos prometo grande coisa: logo o deixarei completamente. Quereis o meu espírito vital? Por que não deveria estar prontíssimo a fazer-vos receber aquilo que vós mesmos me destes? Levareis conforme à minha vontade tudo o que me pedistes. Que está, pois, em questão? Teria preferido oferecer antes que entregar essas coisas. Que necessidade havia de tirá-las de mim? Poderíeis recebê-las. Mas nem mesmo agora vós a tirareis verdadeiramente de mim, porque nada se rouba senão a quem quer reter."8

Esta é uma concepção que exprime um particular sentimento da vida, que revive também no estoicismo romano, ou seja, no próprio Sêneca e, sobretudo, em Epicteto.


Notas:

1. Demétrio nasceu, provavelmente, nos inícios do século I d.C. Já era conhecido pela sua doutrina e por sua vida cínica nos anos do império de Calígula, a julgar pelo que refere Sêneca, De benef., VII, 11. Talvez tenha deixado Roma uma primeira vez, depois da condenação de Trásea Peto, de quem era amigo (cf. Tácito, Anais, XVI, 34), em 67 d.C. É certa a sua expulsão de Roma em 71 d.C., por causa da oposição à política do imperador Vespasiano. Pouco sabemos sobre os seus últimos anos (vividos provavelmente, pelo menos em parte, na Grécia). A nossa principal fonte de informação é Sêneca, que o frequentou assiduamente.

2. Sêneca, De benef., VII, 1, 3

3. Sêneca, De benef., VII, 8, 2s

4. Sêneca, Epist., 62, 3

5. Sêneca, De benef., VII, 1, 7

6. Sêneca, Epist., 67, 14

7. Sêneca, De provid., VII, 3

8. Sêneca, De provid., V, 5s.



REALE, Giovanni. História da Filosofia Antiga IV: As Escolas da Era Imperial. Edições Loyola. p. 190-192


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Enfermeiro formado pela UFRJ. Pós-graduado em saúde mental. Humanista. Áreas de interesse: Cinismo; materialismo francês; Sade; Michel Onfray; ética. Idealizador e escritor do Portal Veritas desde dez/2005.

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