O Tempo Estóico

por Breno Lucano

Sendo a paixão um lógos álogos - um lógos que deixou de ser lógos -  o homem pode romper, por seu próprio esforço, a progressão temporal retilínea que acompanha os estados passionais, atualizando seu lógos, de modo que ele passe a viver apenas o hoje. Só o acompanhamento da natureza retira-o da temporalidade contrária ao modo de presença cósmico, atemporal, atual. Querer permitir ao homem uma espécie de inserção no Aion, talvez seja essa a arrogância estóica. Numa passagem bastante pertinente, Goldschmidt comenta sobre o tempo nos estóicos:


"... o preceito de viver conforme a natureza se resume... em concentrar no único instante possível uma atualidade esquecida de sua gênese e desdenhosa de seu desabrochar." 1




O tempo da ética, obedecendo o ritmo da vida universal, é aquele que constitui a ação correta e está identificado com o instante, com o agora, pois o futuro e o passado não existem, mas subsistem como incorpóreos (uma das categorias estóicas) Qualquer regra exterior a ser seguida (mandamentos históricos, religiosos, ...) não terá conotação ética, segunda a Stoa; não terá o peso que normalmente lhe damos. É na interioridade e no tempo dessa interioridade que a eticidade é edificada. Proclo noticia:


"... com efeito, o tempo é um de seus (dos estóicos) incorpóreos que eles desprezam como coisas débeis, desprovidas de ser e só existindo nos simples pensamentos (en einoíasis hypistamena pschilais)... " 2


O instante é o "tempo" da Heimarméne, da Prónoia, indicativo da escolha do agente moral. Ele adere à densidade e plenitude da eternidade dos deuses nos constantes estados de sua adesão. Só o sábio tem a virtude e a felicidade, nessa perspectiva; só ele é um homem divino sempre. Os homens comuns vivem estados de virtude e felicidade e são sábios ao menos enquanto perduram tais estados. Goldschmidt comenta os estados passionais, distantes da sabedoria:


"... A perfeição não é solidária do tempo que escoa e que parece inflar e alongar-se... o próprio da paixão é sujeitar-nos ao tempo irreal, em que o passado sobrevive para comunicar sua 'existência' e seu conteúdo ao futuro." 3


Esse belo comentário de Goldschmidt indica que, na saída do compasso universal, o insensato mergulha na temporalidade propriamente humana, perde-se no tempo agitador das paixões da alma, permanece servo da memória e da esperança, isto é, do passado e do futuro. Escravo das paixões, sua memória deseja o que não mais tem, do mesmo modo que lamenta o que ainda não obteve. Inalcançáveis ambos, passado e futuro, fica o presente dissolvido pelo peso das lembranças e esperanças.

As duas temporalidades - a dos deuses e a dos homens - enfrentam-se:

* o tempo humano, de Tyche: da fortuna, do acaso, espaço da historicidade, da insensatez, das ações determinadas pela exterioridade;


* o tempo divino, de Anánke: da Cosmópolis, do sábio, das ações pensadas na interioridade. A autarquia estóica situa o homem no 'tempo' divino, no aion.


Notemos, todavia, que não há uma insensibilidade aos acontecimentos, uma altivez estóica ou frieza diante dos males, como passou a significar o adjetivo estóico. Há bem mais uma ausência de agitação violenta da alma, sinal da negação do tempo acumulador de desejos insaciáveis. Assim, para uma correta compreensão da dimensão da Stoa, se faz necessário uma fuga constante do olhar cristão sobre sua cosmologia.

A apatia estóica, no rigor do termo, implica atividade que favorrece a ação do lógos, não, porém, para evadir-se das coisas que acontecem, bem ao contrário. O estóico não se distancia das coisas ao redor. Nesse sentido, a apatia não deve ser entendida como ausência de ação, e nem com a ataraxía como alheamento diante da vida. É uma busca de estabilidade da alma diante dos acontecimentos. Pode-se dizer que tais afirmações são contrárias ao que o senso comum pensa dos estóicos. Parece-me que se devem compreender os estados passionais desmedidos como acontecimentos que, lidos de certo modo, chegam aos olhos já comprometidos com o passado e com o futuro - que não são -, dada a agitação da alma. Não se pode, comprometido que se está com a cronologia, enlaçar a escolha de modo a receber o que advém, como advém.

Não seria exatamente esse o modo como interpretamos as coisas que nos chegam, interpretações mergulhadas no passado e no futuro, o solo propício para a evasão do que acontece no presente? Assim sendo, há uma inversão sui generis do que pensamos ser a evasão do estóico (sua apatia) em sua postura diante do mundo. Nós, instalados que estamos na cronologia, evadimo-nos do que acontece ao interpretar o que advém com os instrumentos comprometidos com o passado e o futuro.


Notas:

1. V. Goldschmidt, Le système stoicien el l'idée de temps, Paris, Vrin, 1953, p. 186.

2. Proclo, Plat. Tim., 271 d.

3. V. Goldschmidt, Le système stoicien el l'idée de temps, op. cit., p. 202 e 193



Enfermeiro formado pela UFRJ. Pós-graduado em saúde mental. Humanista. Áreas de interesse: Cinismo; materialismo francês; Sade; Michel Onfray; ética. Idealizador e escritor do Portal Veritas desde dez/2005.

Um comentário :

  1. "...uma atualidade esquecida de sua gênese e desdenhosa de seu desabrochar""
    Brilhante síntese Goldschmidt quanto ao tempo nos estóicos, pois refere-se a um ato de captar um instante possível e isso concerne a um apelo que , por sua vez, vem deste cosmo ou deste logos como um convite permanente. A obstrução que se opõe ao convite é o próprio embrenhar-se por uma linearidade, que em seu movimento, afasta este corpo dentre outros corpos da efetivação de sua própria corporeidade atirando-o no incorpóreo que é o que não é.

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