O Problema Sócrates

por Breno Lucano
Filme Sobre Sócrates

Além de Platão, Sócrates é narrado por Aristóteles e por biógrafos helenistas, como Diógenes Laércio. Contudo, a interpretação aristotélica de Sócrates é vista com reservas pelos historiadores, pois Aristóteles sempre "aristoteliza" o pensamento de seus antecessores, tornando-os momentos preparatórios de suas próprias concepções filosóficas. Por outro lado, as biografias que sobre os pensadores mais antigos da Grécia foram produzidas no período helenístico não apresentam grande exigência crítica. Numa fase marcada pela sombra da perda de liberdade política, o importante para os gregos era descrever a vida daqueles que haviam vivido nos momentos da perdida grandeza política, sem se importar tanto com o rigor das informações e misturando dados históricos com relatos fantasiosos, algo que ocorreu com outros textos antigos, como os textos bíblicos. A inclusão de dados extraordinários era um mecanismo usado na antiguidade para dar crédito excepcional a um dado personagem, como ocorreu com Pitágoras e Jesus, entre outros. 

As fontes mais seguras para a reconstituição da vida e do pensamento de Sócrates continuam sendo, assim, os depoimentos de seus contemporâneos. Do confronto entre os testemunhos deixados por Platão, Xenofonte e Aristófanes é que sobretudo os historiadores têm procurado recompor a verdadeira fisionomia do Sócrates-homem e do Sócrates-filósofo, o conhecido homem-histórico. 


Se Aristófanes teria focalizado Sócrates na fase anterior a seu magistério filosófico e se, além disso, misturou-lhe os traços com os de cosmólogos jônicos e os dos sofistas, então de Xenofonte e de Platão é que devem ser recolhidas as principais informações referentes ao Sócrates que marcou tão profundamente não apenas a cultura grega como também toda a herança ocidental. Xenofonte, porém, segundo a maioria dos historiadores, espírito bastante simplório, não teria tido condições para apreender toda a dimensão dos ensinamentos socráticos. Essa seria a razão de, freqüentemente, trazer as idéias éticas de Sócrates para o nível de simples lugares-comuns, empobrecendo-as e deturpando-as.

O contrário exatamente é o que se pode dizer de Platão: ninguém mais bem dotado para acompanhar o mestre em todas as suas sutilezas e em todos os seus vôos, por mais altos que se alçassem. Aqui o perigo é oposto: Platão pode ter atribuído a Sócrates mais do que ele disse ou quis dizer. E, já que aparece em quase todos os diálogos platônicos, Sócrates surge como um mensageiro, um precursor das idéias platônicas, como a Teoria das Formas, que não foi exposta por Sócrates. A resolução da questão socrática transforma-se assim, em grande parte, na questão da delimitação de fronteiras entre o pensamento de Sócrates e o de Platão, dentro dos próprios Diálogos platônicos.

Confrontando-se o socratismo de Platão com o dos chamados "socráticos menores" (megáricos, cínicos, cirenaicos), pode-se, até certo ponto, tentar uma aproximação do Sócrates histórico. Este, de qualquer forma, desde a Antiguidade, perdeu o caráter estrito de indivíduo concreto, condenado à morte em 399 a.C, para se transformar em ideal humano. De fato, Sócrates é visto como o mestre e o iniciador de todas as grandes correntes filosóficas da antiguidade e nomes como Zenão de Cício e Antístenes aparecem como um continuador da mensagem socrática. Na medida mesma em que só se tem de Sócrates reflexos produzidos na consciência e na obra de discípulos ou de adversários, já que ele teria escolhido a comunicação direta e viva do diálogo oral, torna-se difícil reconstituir com fidelidade sua vida e seu pensamento. Diante das incertezas inevitáveis, alguns historiadores modernos chegaram a levantar a hipótese da inexistência do Sócrates histórico — pelo menos com as características que lhe foram apontadas pelos relatos dos antigos, à imagem do que ocorre com Jesus histórico. 

Sócrates, chegou-se a afirmar, seria uma criação literária, a serviço do nacionalismo ateniense. Se essa tese não prevalece entre os historiadores, por outro lado é inegável que a recuperação de Sócrates como "fato" histórico defronta-se com a dificuldade da escassez de dados indisputáveis: a objetividade histórica de Sócrates se dilui na teia de depoimentos diversos e às vezes discrepantes. Porém não foi justamente isso o que — segundo a Apologia platônica — ele quis ser: alguém que apontava não para a ciência das coisas e sim para a consciência do próprio homem? A ciência sobre Sócrates — a resolução da "questão socrática", a reconstituição do Sócrates histórico — não poderia assim ser socraticamente reformulada? A escassez de dados objetivos indiscutíveis a seu respeito não o transforma, fundamentalmente, num apelo à consciência do homem que dele se aproxima — como contemporâneo ou como estudioso, em qualquer época, de seu pensamento? Ele, que reiteradamente teria afirmado não possuir ciência alguma, não teria também declarado ter aceito a missão de ajudar os homens a se voltarem para o conhecimento de si mesmos, para o desbravamento da própria subjetividade, tentando a conquista da própria alma? Pois essa consciência e essa subjetividade é que estão desde logo comprometidas com Sócrates, quando se pretende recuperar sua fisionomia autêntica. Tentar decifrá-lo é já decifrar-se um pouco, buscar conhecê-lo é inevitavelmente uma ocasião para reagir ao desafio de seu enigma. Sócrates remete seu decifrador à própria consciência, oferecendo-lhe uma ocasião para se conhecer a si mesmo.


Enfermeiro formado pela UFRJ. Pós-graduado em saúde mental. Humanista. Áreas de interesse: Cinismo; materialismo francês; Sade; Michel Onfray; ética. Idealizador e escritor do Portal Veritas desde dez/2005.

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