Do Materialismo

por Breno Lucano

"O século XVIII francês é materialista?". A essa indagação oportuna de Jean Ehrad acrescentaríamos outra similar: o século das Luzes foi ateu? Nem materialista nem ateu. Como afirma Ehrard, a filosofia desse período foi dominada pelo teísmo de Rousseau, pelo deísmo de Voltaire e pelo "cristianismo aberto e tolerante" de Montesquieu. O materialismo ficou quase restrito a Holbach. Pouco representativo do ponto de vista estatístico, possuiu seu apogeu entre os anos de 1760 e 1770.

Tendo em vista às duras críticas à Igreja e seus pretensos milagres, além da idéia da criação do mundo, o materialismo se concentrou na redução do sobrenatural ao natural. Em outras palavras, Deus, milagres, alma, purgatório, se restrigem à condição nominalista à medida em que perdem seu significado. Contudo, por não ser umm sistema homogêno e fechado, temos vários materialismos. E, como se sabe, Meslier foi o pioneiro nessas idéias.



Os termos "materialista" e "materialismo" aparecem na Europa nos séculos XVII e XVIII, sendo associados ao pensamento lockiano. Sendo mencionados na França somente a partir de 1702 - na Inglaterra desde 1688 -, surgiu a partir de um embate entre Bayle e Leibniz a cerca da harmonia preestabelecida e das relações entre alma e corpo. Eram conhecidos como os partidários do primado do corpo sobre a alma. Em oposição, tínhamos os idealistas, os que defendem a superação da alma sobre o corpo e que acreditavam na imortalidade substancial. Aos olhos de Leibniz, as idéias materialistas conduziriam os homens à impiedade e consequentemente à degradação social, idéia que perdura até os dias atuais. O materialista passou a ser entendido como ateu. Quando o termo foi usado no vocabulário filosófico, os intelectuais o pensavam apenas como pejorativo, sempre relacionado ao satanismo e ao caos. Mais tarde, com La Mettrie, algo muda.  O materialismo passa a ser entendido como doutrina antagônica ao espiritualismo. Frank Salaun sugere o seguinte quadro das etapas da evolução semantica dos termos:

1. 1700-1730: raramente aparecem os termos e, mesmo assim, em discurssões altamente especializadas;

2. 1730-1745: sempre com conotação pejorativo, começam a ser atrelados aos nomes de Epicuro, Espinosa, Hobbes e Locke;

3. a partir de 1745: passam a ser referenciados aos pensamentos de La Mettrie;

4. 1751-1789: já com força e elaboração filosófica, chegando, em alguns casos, a ser conhecidos como ateus e céticos, passam a ser importante corrente em confronto com as doutrinas tradicionais e de sustentação ideológica da ordem política e social do Antigo Regime.

A difusão cada vez maior do materialismo engendrou uma reação exasperada por parte de eclesiásticos, deístas, filósofos cristãos e mesmo membros da nobreza, todos preocupados com a manutenção da moral e com a salvaguarda das instituições. Olivier Bloch sustenta que o processo de animosidade e de marginalização contra o materialismo forteleceu-se na França no século XIX por meio de um complô idealista que sustentavam ao máximo que o materialismo ateu fosse ocultado, difamado, caricaturado e banido dos volumes  de história da filosofia e dos programas universitários - o que também ocorre até os dias de hoje. Isso certamente explica como Holbach, Diderot e La Mettrie sejam considerados filósofos menores e seus trabalhos pouco conhecidos e estudados, ao passo que, numa rápida visita à bibliotecas universitárias, encontramos inúmeras dissertações e teses sobre Descartes e Kant.

Ainda no século XIX, na França, mais precisamente em 1857, entre os religiosos, surge a emblemática figura de Allan Kardec e o lançamento de seu famoso O Livro dos Espíritos. Apesar de se afirmar portador de métodos científicos e, portanto, descendente da tradição lockeana, Kardec se opõe fortemente contra o materialismo, apresentando-o de forma trivial, caricata e sem fundamentação.

Marx e Engels, em 1845, em A Sagrada Família, dedica um capítulo sobre o materialismo francês. Logo no início lemos que "a filosofia francesa das luzes do século XVIII e, sobretudo o materialismo francês, não foram somente uma luta contra as instituições políticas existentes, contra a religião e a teologia existentes, mas uma luta aberta, uma luta declarada contra a metafísica do século XVIII e contra toda a metafísica, sobretudo aquela de Descartes, Malebranche, Espinosa e Leibniz". Dentre os materialistas franceses citados por Marx e Engels, encontramos todos, de La Mettrie a Holbach, passando por Helvétius e Diderot, inclusive alguns autores inusitados como Leroy, Cabanis, Robinet, Volney e Dupuis. Curiosamente o nome de Meslier fora descartado.

Claro, não podemos, de modo algum, negar a evolução filosófica do materialismo a partir de Marx, mas seria injusto dividir sua história em antes e depois de Marx. O materialismo da época de La Mettrie e de Diderot possui características próprias. Enquanto Holbach e Sade privilegiam a crítica à religião e sério combate metafísico, o materialismo marxista e anarquistas que vieram após Marx, como Bakunin, Kropotkin, Lênin, dirigiram suas ocupações às esferas sociais, econômicas e políticas, o que não significa que no século XVIII não se tecessem críticas ao meio social.

Ainda hoje o materialismo fala por si só. E, longe das rotineiras preocupações metafísicas oriundas da leitura de Descartes ou Kant, deveríamos, ao menos por curiosidade, conhecer seus autores, seu pensamento e assim, ressurgir nas universidades e no meio popular uma reflexão mais crítica e mais corporal.


Enfermeiro formado pela UFRJ. Pós-graduado em saúde mental. Humanista. Áreas de interesse: Cinismo; materialismo francês; Sade; Michel Onfray; ética. Idealizador e escritor do Portal Veritas desde dez/2005.

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